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Miragem

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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Conto

Era mais um dia de trabalho como todos os outros,com a única diferença que este era muito mais cansativo e agitado.
A cozinha ainda estava num reboliço,tachos,panelas,pratos espalhados por toda a cozinha,restos de comida ,de doces perfumando espaço,restos de vazios preenchendo o coração de Joana.
Naqueles últimos dias o tempo tinha sido pouco para pensar.O restaurante iria estar cheio,era preciso preparar tudo.As entradas,as sobremesas.Tudo tinha que estar preparado com alguma antecedencia.
Joana a única mulher naquela cozinha era solicitada para tudo.
-Joana as batatas já estão descascadas?
-O arroz doce já está feito?
Todos queriam ajuda,todos precisavem dela.
Joana percorria a cozinha de um lado para outro,sempre disponível,sempre silenciosa,não tinha tempo de pensar nela,não tinha tempo de pensar nos seus dilemas,nos seus vazios,na sua solidão interior,na frieza das noites.
Há muito tinha perdido o sentido das estações,dos ritos e dos rituais das épocas religiosas.
Lembrava-se às vezes de como era em criança,mas isso já era tão distante na sua memória.
A mãe tinha partido há muito tempo,e do pai nem se lembrava.
Sempre tinha vivido sozinha,apenas o trabalho lhe preenchia as horas.
Desta vez ,não tinha sido diferente,da cozinha ela ouvia o barulho dos pratos,o tilintar dos copos,a conversa dos adultos,os risos das crianças.
O mundo que girava fora dela,sempre fora dela.
-Não entendo por que é que esta gente tem que comemorar tudo? Pensava ela já cansada.
-Será o Natal esta algazarra toda? Esta alarvidade toda?
O Natal da sua infância era em tudo antagónico a este que ela assistia agora.
Comia as batatas com as couves da horta,um bocadinho de bacalhau a alegrar o prato.E o arroz doce,o arroz doce nunca faltava na noite e no dia de Natal.
No dia de Natal iam à missa,e em procissâo silenciosa ,dirigiam-se ao altar para beijar o menino jesus que o padre segurava nas mãos.
Tudo isto estava guardado nas sua mais remotas memória,tudo isto fazia parte de um passado que não voltaria mais.A sua realidade agora era o imenso reboliço da cozinha,pratos e panelas para lavar, os gritos dos cozinheiros, a insatisfação galopante dos empregados de mesa,os risos das crianças na sala.

Já passava da meia noite quando Joana acabou as suas tarefas.
Tirou o avental,penteou os cabelos em desalinho e voltou para casa.
Percorreu as ruas vazias,iluminadas pelas luzes de Natal.
Contemplou a cidade adormecida,alguns mendigos dormiam acompanhados da sua desventura,e da sua solidão.
-Queres um pedaço de Bolo-Rei? Perguntou a um deles que se mexeu mal a viu passar.
-Se tiveres quero,ainda hoje não comi nada.
Joana tirou o pedaço de bolo que trazia consigo,estava guardado para comer em casa.
Toma, come-disse Joana
-Feliz Natal.desejou-lhe.
Retomou o seu caminho,em silencio,sempre em silencio,o cansaço impedia-a de pensar,e depois,para quê pensar´?
O mundo estava deveras incompreensivel para que ela pudesse compreender o sentido de tanta injustiça.
Chegou a casa ,abriu a porta e entrou.Lá dentro o silencio e vazio preenchiam o espaço .
As celebrações pagãs não cabiam naquele espaço tão pequeno.
Joana olhou o pequenino presépio que tinha sempre na cristaleira da sala.
Pegou no Menino Jesus,deu-lhe um beijo e disse para si.
-Feliz Natal.